quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Toríbio

Mais um texto transplantado do meu blog antigo (não esperem nada de novo lá, eu perdi a senha...) para este novo. Novamente, apresenta-se a saga do homem de Toríbio, ainda não concluída. Como nós assalariados só temos tempo para essas coisas nas férias (Ángel Rama tem coisas muito interessantes sobre a atividade literária na America Latina com respeito a isso...), espero concluí-la nas próximas. Espero que gostem.

"A volta dos que não foram" - Primeiro capítulo

I

Perto de X. existe uma pequena vila chamada Toríbio que não chega aos seiscentos habitantes. A aldeia é politicamente dividida entre os municípios de X. e T. (ou seja, um empurra os problemas administrativos locais para o outro sem que nenhum dos dois se pronuncie). Em período eleitoral aparecem candidatos de ambos, com seus circos armados à caça de votos.
Toríbio é uma aldeota preponderantemente rural, com ruelas de barro empesteadas de bosta de vaca, casas pequenas, galinhas por todos os lados, porcos caminhando livremente pelas calçadas e homens picando fumo para cigarros de palha. Nos bares, em meio ao cheiro forte de cachaça recém-retirada do alambique do vilarejo (aguardente de ótima qualidade) podem-se ouvir as vozes exaltadas dos homens jogando truco.
Mas o mais curioso na vila de Toríbio é o fato de ela estar realmente – literalmente – na boca do Inferno. Embora haja quem afirme que a porta do Inferno fique em Cerbère, na fronteira franco-espanhola, em Comala, nos confins do planalto mexicano, que compositores germânicos barganhem suas almas em Palestrina, cidade que teve sua influência demoníaca atestada até por Dante, que existam embaixadores demoníacos em Guernesey, Ortach e demais ilhotas da Mancha, ou, ainda, em paragens do Oriente próximo, da Ásia distante, como Teku-Benga, nos ritos turbulentos da África Negra ou no deserto escaldante (onde o Inferno é gelado), e por valorosos que fossem tais escribas; não conheciam nossas plagas austrais, principalmente as banhadas pelos humores atlânticos. Em Toríbio localizam-se os portões infernais, e é lá que os mortos tomam a fresca quando o Inferno está muito quente (logicamente, pelas leis da termodinâmica, se a taxa de crescimento infernal é proporcionalmente menor que a de massa adentrante (consideramos aqui que as almas têm massa) no quadrado da distância – comprovando a endotermia infernal – , e atentando ao fato recorrente de que essa massa exorbita o espaço disponível, elevando os níveis de calor acima do suportável, o excedente interno precisa ser aliviado para que não explodam os reinos de belzebu. É nesse momento que as almas saem em busca de refresco (ao contrário do que se pensa, as almas podem sair). O Inferno tem cozinheiros ingleses, taxistas franceses, mulheres norte-americanas, juízes de futebol, uísque paraguaio e administradores brasileiros que possibilitam a saída. É comprovado o caso de um político local que chegou ao cargo de senador e fora expulso do Inferno por querer mandar mais que o próprio Diabo. Oxalá fosse possível elaborar-se todo um tomo tratando apenas desses aspectos, mas, como não convém a preâmbulo demorar-se (e este já se adianta ao enfado...), voltemos a Toríbio e à nossa história.

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