sábado, 28 de maio de 2011


Caros leitores, reverenciemos o Grande Mestre Maior das Letras deste país. Não há necessidade de dizer que estamos aqui a falar do Excelentíssimo Senhor Joaquim Maria Machado de Assis! Aos que têm estilo e senso crítico, deleitem-se! Aos que o perderam, sintam saudades de como era! Aos que nunca tiveram, aprendam! Graças, obrigado, Mestre!

O mundo das idéias

“Há alguém, disse o Sr. Senador João Alfredo, citando um velho dito conhecido, há alguém que tem mais espírito que Voltaire, é todo o mundo”.

Não sei se já alguma vez disse ao leitor que as idéias, para mim, são como as nozes, e que até hoje não descobri melhor processo para saber o que está dentro de umas e de outras, — senão quebrá-las.

Aos vinte anos, começando a minha jornada por esta vida pública que Deus me deu, recebi uma porção de idéias feitas para o caminho. Se o leitor tem algum filho prestes a sair, faça-lhe a mesma coisa. Encha uma pequena mala com idéias e frases feitas, se puder, abençoe o rapaz e deixe-o ir.

Não conheço nada mais cômodo. Chega-se a uma hospedaria, abre-se a mala, tira-se uma daquelas coisas, e os olhos dos viajantes faíscam logo, porque todos eles as conhecem desde muito, e crêem nelas, às vezes mais do que em si mesmos. É um modo breve e econômico de fazer amizade.

Foi o que me aconteceu. Trazia comigo na mala e nas algibeiras uma porção dessas idéias definitivas, e vivi assim, até o dia em que, ou por irreverência do espírito, ou por não ter mais nada que fazer, peguei de um quebra-nozes e comecei a ver o que havia dentro delas. Em algumas, quando não achei nada, achei um bicho feio e visguento.

Não escapou a este processo a idéia de que todo o mundo tem mais espírito do que Voltaire, inventada por um homem ilustre, o que foi bastante para lhe dar circulação. E, palavra, no caso desta, senti profundamente o que me aconteceu.

Com efeito, a idéia de que todo o mundo tem mais espírito do que Voltaire, é consoladora, compensadora e remuneradora. Em primeiro lugar, consola a cada um de nós de não ser Voltaire. Em segundo lugar, permite-nos ser mais que Voltaire, um Voltaire coletivo, superior ao Voltaire pessoal. Às vezes éramos vinte ou trinta amigos; não era ainda todo o mundo, mas podíamos fazer um oitavo de Voltaire, ou um décimo. Vamos ser um décimo de Voltaire? Juntávamo-nos; cada um punha na panela comum o espírito que Deus lhe deu, e divertíamo-nos muito. Saíamos dali para a cama, e o sono era um regalo,

Perdi tudo isto. Peguei desta compensação tão cômoda e barata, e deitei-a fora. Funesta curiosidade! O que achei dentro, foi que todo o mundo não tem mais espírito que Voltaire, nem mais gênio que Napoleão. Cito estes dois grandes homens, porque o segundo lá está citado na frase do eminente senador.

Sim, meus amigos. Choro lágrimas de sangue com a minha descoberta; mas que lhes hei de fazer? Consolemo-nos com o ser simplesmente Macário ou Pantaleão.

Multipliquemo-nos para vários efeitos, para fazer um banco, uma câmara legislativa, uma sociedade de dança, de música, de beneficência, de carnaval, e outras muitas em que o óbulo de cada um perfaz o milhão de todos; mas contentemo-nos com isto.

Nem me retruque o leitor com o fato de ter de um lado a opinião do autor da idéia, e as gerações que a têm repetido e acreditado, enquanto do outro estou apenas eu. Faça de conta que sou aquele menino que, quando toda a gente admirava o manto invisível do rei, quebrou o encanto geral, exclamando: — El-Rei vai nu! Não se dirá que, ao menos nesse caso, toda a gente tinha mais espírito que Voltaire. Está-me parecendo que fiz agora um elogio a mim mesmo. Tanto melhor; é minha doutrina.

3 de março de 1885

quarta-feira, 18 de maio de 2011

A porta aberta


A porta aberta

- Minha tia já irá descer, Sr. Nuttel - disse uma jovem de quinze anos, muito segura de si. - Neste meio tempo, o senhor terá que fazer o possível para me aturar".

Framton Nuttel empenhava-se em achar algo para falar que pudesse lisonjear a sobrinha do momento sem menosprezar indevidamente a tia que estava por chegar. No íntimo, duvidava que essa série de visitas formais a pessoas totalmente desconhecidas pudessem ser muito úteis na cura de seu suposto problema de nervos.

- Eu sei como vai ser - havia dito sua irmã quando ele se preparava para partir para o campo - você se enterrará ali e não falará com vivalma, e seus nervos ficarão piores do que nunca. Por precaução, eu vou lhe entregar cartas de apresentação para todas as pessoas que eu conheci. Algumas, até onde me recordo, eram bastante agradáveis.
Framton perguntava-se agora se a Sra. Sappleton, a dama a quem iria entregar uma das tais cartas de apresentação, era do grupo das agradáveis.

- Você conhece muita gente por aqui? - perguntou a sobrinha, quando julgou que o silêncio já se fazia longo demais.

- Quase ninguém - respondeu Framton. - Minha irmã esteve aqui, na reitoria, você sabe, há uns quatro anos, e me entregou cartas de apresentação para algumas pessoas daqui. Ele disse a última frase em um tom pesaroso.

- Então o senhor não sabe praticamente nada sobre a minha tia? - continuou a calma jovem.

- Somente o seu nome e endereço - admitiu o visitante. Ele desejava saber se a Sra. Sappleton seria casada ou viúva. Alguma coisa no ambiente sugeria uma presença masculina.

- A grande tragédia dela aconteceu há três anos - disse a menina - quer dizer, depois do tempo de sua irmã.

- Uma tragédia? - perguntou Framton. De alguma forma, neste tranqüilo rincão as tragédias pareciam algo fora de lugar.

- O senhor deve ter se perguntado por que motivo deixamos aquela porta escancarada em uma tarde de outubro - disse a sobrinha, apontando para uma larga esquadria que dava para um jardim.

- Faz bastante calor nesta época do ano - disse Framton. - Mas o que a janela tem a ver com a tragédia?

- Por essa porta, um dia, há exatos três anos, o marido dela e seus dois irmãos menores saíram, para uma caçada. Nunca mais voltaram. Ao atravessarem o brejo que levava ao seu lugar favorito, onde gostavam de caçar narcejas, afundaram em um trecho traiçoeiro do pântano. Foi durante um verão terrivelmente chuvoso, você sabe, e os terrenos que antes eram firmes cediam sem que houvesse maneira de escapar. Seus corpos jamais foram encontrados. E essa é a parte terrível.

Nesse momento, a voz da garota perdeu o tom seguro para tornar-se vacilante, humana.

- Minha pobre tia ainda acredita que eles voltarão algum dia, eles e o pequeno cão marrom que os acompanhava, e que entrarão por aquela porta como costumavam fazê-lo. Eis por quê a porta é mantida sempre aberta até o crepúsculo. Pobre e querida tia, vive me contando o modo como eles saíram, seu marido com seu impermeável branco no braço, e Ronnie, seu irmão caçula, cantando "Bertie, por que pulas tanto?", sempre a provocando, pois sabia que essa canção a irritava. Sabe, às vezes, em tardes tranqüilas como a de hoje, eu tenho uma sensação apavorante de que eles todos entrarão por aquela porta.

A garota teve um leve estremecimento. Foi um alívio para Framton quando a tia irrompeu na sala, pedindo desculpas pela demora.

- Espero que Vera tenha lhe entretido - disse.

- Ela me contou coisas interessantes - respondeu Framton.

- Espero que não se importe com a porta aberta - disse a Sra. Sappleton. - Meu marido e meus irmãos estão caçando e sempre entram por essa porta. Hoje foram caçar narcejas nos brejos e não quero nem imaginar o estado em que vão deixar os meus pobres tapetes. Vocês, homens, são todos assim, não?

Ela continuou a tagarelar alegremente sobre a caça, a escassez de aves e as chances de haver patos no inverno. Para Framton, tudo era simplesmente horrível. Ele fez um esforço desesperado para conduzir a conversa para um tema menos assustador; mas estava consciente de que sua anfitriã lhe dedicava apenas uma parte de sua atenção, desviando constantemente o olhar em direção à porta aberta e ao jardim. Foi certamente uma infeliz coincidência o fato de sua visita acontecer justamente em tão trágico aniversário.

- Os médicos foram unânimes em me recomendarem total repouso, bem como em me proibirem qualquer excitação mental e exercícios físicos intensos - anunciou Framton, que, como muitos, acreditava erroneamente que pessoas estranhas e encontradas casualmente estivessem ávidas por saber os mais ínfimos detalhes de nossas enfermidades, de sua causa e seu tratamento. - Só quanto à dieta é que eles não estão de acordo - acrescentou.

- Não? - disse a Sra. Sappleton, numa voz que simplesmente substituía um bocejo momentâneo. Subitamente, sua expressão revelou uma atenção vívida - mas não para as palavras de Framton.

- Finalmente chegaram! - gritou. - Bem a tempo para o chá, e não é que estão sujos de lama até os olhos!

Framton estremeceu levemente e voltou-se para a sobrinha, com um olhar com o qual pretendia demonstrar sua condoída compreensão. A garota tinha os olhos fixos na porta aberta, com um brilho de horror no olhar. Tomado de um arrepiante e inominável temor, Framton virou-se na poltrona e olhou na mesma direção.

No escuro crepúsculo, três vultos atravessavam o jardim em direção à porta; todos carregavam armas embaixo do braço, e um deles levava um impermeável branco por sobre os ombros. Um cachorro marrom, cansado, os acompanhava.

Silenciosamente eles se aproximaram da casa, e logo se ouviu uma voz jovem e rouca que cantava: "Bertie, por que pulas tanto?" ·

Framton agarrou apressadamente seu chapéu e sua bengala; a porta do vestíbulo, o passeio de cascalho e o portão foram etapas quase não notadas de sua impetuosa retirada. Um ciclista que passava pela estrada foi obrigado a desviar para evitar a colisão iminente.

- Aqui estamos, querida - disse o que carregava o impermeável branco, entrando pela porta. - Bastante sujos, mas quase secos. Mas quem era esse homem que saiu correndo assim que entramos?

- Um homem esquisitíssimo, um tal Sr. Nuttel - disse a Sra. Sappleton. - Só falava de sua doença, e sumiu, sem nem se despedir ou se desculpar, assim que vocês chegaram. Parece até que ele viu um fantasma.

- Eu acho que foi o cachorro - disse tranqüilamente a sobrinha. - Ele me contou que tinha horror a cachorros. Uma vez ele foi perseguido por uma matilha de cães em um cemitério próximo ao Ganges e teve que passar a noite em uma cova recém aberta com os animais grunhindo e rosnando e espumando bem acima dele. O suficiente para qualquer um ficar com os nervos abalados.

A garota era especialista em improvisar histórias.

Tradução: Roberto Schmitt-Prym

SAKI é o pseudônimo do britânico Hector Hugh Munro (1870-1916), considerado por Graham Greene como o melhor humorista inglês do século vinte. Munro retirou o nome Saki de um verso de Omar Khayyam, após ler o Rubayat. Seu forte eram histórias curtas de finais surpreendentes, um pouco à moda de Guy de Maupassant e O. Henry Após a morte de sua mãe, Saki foi criado por duas tias rabugentas e antipáticas, que não lhe proporcionaram uma infância infeliz, razão pela qual algumas de suas histórias tratam da crueldade da qual as crianças são capazes, caso de "A janela aberta". Obras do autor: Reginald (1904), The Chronicles of Clovis (1911), Beasts and Super-Beasts (1914), entre outros além de duas novelas: The Unbearable Bassington (1912) and When William Came (1914). Saki morreu na França durante a Primeira Guerra Mundial.