quinta-feira, 16 de setembro de 2010

A morte do Lidador; Alexandre Herculano

A MORTE DO LIDADOR
Alexandre Herculano




- Pajens! Ou arreiem o meu ginete murzelo; e vós dai-me o meu lorigão de malha de ferro e a minha boa toledana. Senhores cavaleiros, hole contam-se noventa e cinco anos que recebi o batismo, oitenta que visto armas, setenta que sou cavaleiro, e quero celebrar tal dia fazendo entrada por terras da frontaria dos mouros.
Isto dizia na sala de armas do castelo de Beja Gonçalo Mendes da Maia, a quem, pelas muitas batalhas que pelejara e por seu valor indomável, chamavam Lidador. Afonso Henriques, depois do infeliz sucesso de Badajoz, e feitas pazes com el-rei Leão, o nomeara fronteiro da cidade de Beja, de pouco tempo conquistada aos mouros. Os quatro Viegas, filhos do bom velho Egas Moniz, estavam com êle, e outro muiots cavaleiros afamados, entre os quais D. Ligel de Flandres e Mem Moniz - que a festa de vossos anos, Senhor Gonçalo Mendes, será mais de mancebo cavaleiro que de capitão encanecido e prudente. Deu-vos el-rei esta frontaria de Beja para bem a haverdes de guardar, e não sei se arriscado é sair hoje à campanha, que dizem os escutas, chegados ao romper d'alva, que o famose Almoleimar correr por êstes arredores com dez vêzes mais lanças do que tôdas as que estão encostadas nos lanceiros desta sala de armas.
- Voto a Cristo - atalhou o Lidador - que não cria em que o senhor rei me houvesse pôsto nesta tôrre de Beja para estar assentado à lareira da chaminé, como velha dona, a espreitar de quando em quando por uma seteira se cavaleiros mouros vinham correr até a barbacã, para lhes cerrar as portas e ladrar-lhes do cimo da tôrre da menagem, como usam os vilãos. Quem achar que são duros de mais os arneses dos infiéis pode ficar-se aqui.
- Bem dito! Bem dito! - exclamarem, dando grandes risadas, os cavaleiros mancebos.
- Por minha boa espada! - gritou Men Moniz, atirando o guante ferrado às lájeas do pavimento - que mente pela gorja quem disser que eu ficarei aqui, havendo dentro de dez léguas em redor lide com mouros. Senhor Gonçalo Mendes, podeis montar em vosso ginete, e veremos qual das nossas lanças bate primeior em adarga mourisca.
- A cavalo! A cavalo! - gritou outra vez a chusma, com grande alarido.
Dali a pouco, ouvia-se o retumbar dos sapatos de ferro de muitos cavaleiros descendo os degraus de mármore da tôrre de Beja e, passados alguns instantes, soava só o tropear dos cavalos, atravessando a ponte levadiça das fortificações exteriores que davam para a banda da campanha por onde costumava aparecer a mourisma.


2

Era um dia do mês de julho, duas horas depois da alvorada, e tudo estava em grande silêncio dentro da cêrca de Beja: batia o sol nas pedras esbranquiçadas dos muros e tôrres que a defendiam: ao longe, pelas imensas compinas que avizinhavam o têso sôbre que a povoação está assentada, viam-se ondear as searas maduras, cultivadas por mãos de agarenos para seus novos senhores cristãos. Regados por lágrimas de escravos tinham sido êsses campos, quando formoso dia de inverno os sulcou o ferro do arado; por lágrimas de servos seriam outra vez umedecidos, quando, no mês de julho, a paveia, cercada pela fouce, pendesse sôbre a mão do ceifeiro: chôro de amargura havia aí, como, cinco séculos antes, o houvera: então de cristãos conquistados, hoje de mouros vencidos. A cruz hateava-se outra vez sôbre o crescente quebrado: os coruchéus das mesquitas convertiam-se em campanários de sés, e a voz do almuadem trocava-se por toada de sinos, que chamavam à oração entendida por Deus.
Era esta a resposta dada pela raça goda aos filhos d'África e do Oriente, que diziam, mostrando os alfanges: - "é nossa a terra de Espanha". - O dito árabe foi desmentido; mas a resposta gastou oito séculos a escrever-se. Pelaio entalhou com a espada a primeira palavra dela nos cerros das Astúrias; a última gravaram-na Fernando e Isabel, com os pelouros de suas bambardes, nos panos das muralhas da formosa Granada: e esta escritura, estampada em alcantis de ontanhas, em campos de batalha, nos portais e tôrres dos templos, nos bancos dos muros das cidades e castelos, acrescentou no fim a mão da Providência - "assim para todo o sempre!"
Nesta luta de vinte gera;'oes andavam lidando as gentes do Alentejo. O servo mouro olhava todos os dias para o horizonte, onde se enxergavam as serranias do Algarve: de lá esperava êle salvação ou, ao emnos, vengança; ao menos, um dia de combate e corpos de cristãos estirados na veiga para pasto dos açôres bravios. A vista do sangue enxugava-lhes por algumas horas as lágrimas, embora as aves de rapina tivessem, também, abundante ceva de cadáveres de seus irmãos! E êste ameno dia de julho devia ser um dêsses dias por que suspirava o servo ismaelita.
Almoleimar descera com os seus cavaleiros às campinas de Beja. Pelas horas mortas da noite, viam-se as almenaras das suas talaias nos píncaros das serras remotas, semelhantes às luzinhas que em descampados e tremedais acendem as bruxas em noites de seus folguedos: bem longe estavam as almenaras, mas bem perto sentiam os escutas o resfolegar e o tropear de cavalos, e o ranger das fôlhas sêcas, e o tinir a espaços de alfange batendo em ferro de caneleira ou de coxote. Ao romper d'alva, os cavaleiros do Lidador saíam mais de dois tiros de besta além das muralhas de Beja; tudo porém estava em silêncio, e só, aqui e ali, as searas calcadas davem rebate de que por aquêles sítios tinham vagueados almogaures mouros, como o leão do deserto rodeia, pelo quarto de modôrra, as habitações dos pastôres além das encostas do Atlas.
No dia em que Gonçalo Mendes da Maia, o velho fronteiro de Beja, cumpria os noventa e cinco anos, ninguém saíra, pelo arrebol da manhã, a correr o campo; e, todavia, nunca tão de perto chegara Almoleimar; porque uma frecha fôra pregada a mão em um grosso sovereiro que sombreava uma fonte a pouco mais de tiro de funda dos muros do castelo. Era que nesse dia deviam ir mais longe os cavaleiros cristãos: Lidador pedira aos pajens o seu lorigão de malha de ferro e a sua boa toledana.
Trinta fidalgos, flor da cavalaria, corriam à rédea sôlta pelas campinas de Beja; trinta, não mais, eram êles; mas orçavam por trezentos os homens d'armas, escudeiros e pajens que os acompanhavam. Entre todos avultava em robustez e grandeza de membros o Lidador, cujas barbas brancas lhe ondeavam, como flocos de neve, sôbre o peitoral da cota d'armas, e o terrível Lourenço Viegas, a quem, pelos espantosos golpes da sua espada, chamavam o Espadeiro. Eram formoso espetáculo o esvoaçar dos balsões e signas, fora de suas fundas e soltos ao vento, o cintilar das cervillheiras, as côres variegadas das cotas, e as ondas de pó que se alevantavam debaixo dos pés dos ginetes, como se alevanta o bulcão de Deus, varrendo a face de campina ressequida, em tarde ardente de verão.
Ao largo, muito ao largo, dos muros de Beja cai a atrevida cavalgada em demanda dos mouros; e no horizonte não se vêem senão os topos pardo-azulados das serras do Algarve, que parece fugirem tanto quanto os cavaleiros caminham. Nem um pendão mourisco, nem um albornoz branco alvejam ao longe sôbre um cavalo murzelo. Os corredores cristãos volteiam na frente da linha dos cavaleiros, correm, cruzam para um e outro lado, embrenham-se nos matos e transpõem-nos em breve; entram pelos canaviais dos ribeiros; aparecem, somem-se, tornam a sair ao claro; mas, no meio de tal lidar, apenas se ouvem o trote campassado dos ginetes e o grito monótono da cigarra, pousada nos raminhos da giesteira.
A terra que pisam é já dos mouros; é já além da frontaria. Se olhos de cavaleiros portuguêses soubessem olhar para trás, indo em som de guerra, os que para trás de si os volvessem a custo enxergariam Beja. Bastos pinhais começavam já a cobrir mais crêspo território, cujos outirinhos, aqui e ali, se alteavam suaves, como seio de virgem em viço de mocidade. Pelas faces tostadas dos cavaleiros cobertos de pó corria o suor em bagas, e os ginetes alagavam de escuma as rêdes de ferro acaireladas d'ouro que so defendiam. A um sinal do Lidador, a cavalgada parou; era necessário repousar, que o sol ia no zênite e abrasava a terra; descavalgaram todos à sombra de um azinhal e, sem desenfrear os cavalos, deixaram-nos pascer alguma relva que crescia nas bordas de um arroio vizinho.
Tinha passado meia hora: por mandado do velho fronteiro de Beja um almogávar montou a cavalo e aproximou-se à rédea sôlta de uma selva extensa que corria à mão direita: pouco, porém, correu; uma frecha despedida dos bosques sibilou no ar: o almogávar gritou por Jesus: a frecha tinha-se embebido ao lado: o cavalo parou de repente, e êle, erguendo os braços ao ar, com as mãos abertas, caiu de bruços, tombando para o chão, e o ginete partiu desenfreado através das veigas e desapareceu na selva. O almogávar dormia o último sono dos valentes em terra de inimigos, e os cavaleiros da frontaria de Beja viram o seu transe do repousar eterno.
- A cavalo! A cavalo! - bradou a uma voz tôda a lustrosa companhia do Lidador; e o tinido dos guantes ferrados, batendo na cobertura de malha dos ginetes, soou uníssono, quando todos os cavaleiros cavalgaram de um pulo; e os ginetes rincharam de prazer, como aspirando os combates.
Grita medonha troou ao mesmo tempo, além do pinhal da direita. - "Alá! Almoleimar!" - era o que dizia a grita.
Enfileirados em extensa linha, os cavaleiros árabes saíram à rédea sôlta de trás da escura selva que os encobria: o seu número excedia em conco vêzes o dos soldados da cruz: as suas armaduras lisas e polidas contrastavam com a rudeza das dos cristãos, apenas defendidos por pesadas cervilheiras de ferro e por grossas cotas de malha do mesmo metal: mas as lanças dêstes eram mais robustas, e as suas espadas mais volumosas do que as cimitarras mouriscas. A rudeza e a fôrça da raça gótico-romana ia, ainda mais uma vez, provar-se com a destreza e com a perícia árabes.


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Como longa fita de muitas côres, recamada de fios d'ouro e refletindo mil acidentes de luz, a extensa e profunda linha dos cavaleiros mouros sobressaía na veiga entre as searas pálidas que cobriam o campo. Defronte dêles, os trinta cavaleiros portuguêses, com trezentos homens d'armas, pajens e escudeiros, cobertos dos seus escuros envoltórios e lanças em riste, esperavam o brado de acometer. Quem visse aquêle punhado de cristãos, diante da cópia d'infiéis que os esperavam, diria que, não com brios de cavaleiros, mas com fervor de mártires, se ofereciam a desesperado transe. Porém, não pensava assim Almoleimar, nem os seus soldados, que bem conheciam a têmpera das espadas e lanças portuguêses e a rijeza dos braços que as meneavam. De um contra dez devia ser o iminente combte; mas, se havia aí algum coração que batesse descompassado, algumas faces descoradas, não era entre os companheiros do Lidador, que tal coração batia ou que tais faces descoravam.
Pouco a pouco, a planura que separava as duas hostes tinha-se embbido debaixo dos pés dos cavalos, como no tórculo se embebe a fôlha de papel saindo para o outro lado convertida em estampa primorosa. As lanças iam feitas: o Lidador bradara Santiago, e o nome de Alá soara em um só grito por tôda a fileira mourisca.
Encontraram-se! Duas muralhas fronteiras, balouçadas por violento terremoto, desabando, não fariam mais ruído, ao bater em pedaços uma contra a outra, do que êste recontro de infiéis e cristãos. As lanças, topando em cheio nos escudos, tiravam dêles um som profundo, que se misturava com o estalar das que voavam despedaçadas. Do primeiro encontro, muitos cavaleiros vieram ao chão: um mouro robusto foi derribado por Mem Moniz, que lhe falsou as armas e trapassou o peito com o ferro de sua grossa lança. Deixando-a depois cair, o velho desembainhou a espada e gritou ao Lidador, que perto dêle estava:
- Senhor Gonçalo Mendes, ali tendes, no peito daquele perro, aberto a seteira por onde eu, velha dona assentada à lareira, costumo vigiar a chegada de inimigos, para lhes ladrar, como alcatéia de vilãos, do cimo da tôrre de menagem.
O Lidador não lhe pôde responder. Quando Mem Moniz proferia as últimas palavras, êle topara em cheio com o terrível Almoleimar. As lanças dos dois contendores haviam-se feito pedaços, e o alfanje do mouro cruzou-lhe com a toledana do fronteiro de Beja.
Como duas tôrres de sete séculos, cujo cimento o tempo petrificou, os dois capitães inimigos estavam um defronte do outro, firmes em seus possantes cavalos: as faces pálidas e enrugadas do Lidador tinham ganhado a imobilidade que dá, nos grandes perigos, o hábito de os afrontar: mas no rosto de Almoleimar divisavam-se todos os sinais de um valor colérico e impetuoso. Cerrando os dentes com fôrça, descarregou um golpe tremendo sôbre o seu adversário: o Lidador recebeu-o no escudo, onde o alfanje se embebeu inteiro, e procurou ferir Almoleimar entre o fraldão e a couraça; mas a pancada falhou, e a espada desceu, faiscando, pelo coxote do mouro, que já desencravara o alfanje. Tal foi a primeira saudação dos dois cavaleiros inimigos.
- Brando é o teu escudo, velho infiel; mais bem temperado é o metal do meu arnês. Veremos agora se na tua touca de ferro se embotam os fios dêste alfanje.
Isto disse Almoleimar, dando uma risada, e a cimitarra bateu no fundo do vale penedo desconforme desprendido do píncaro da montanha.
O fronteiro vacilou, deu um gemido, e os braços ficaram-lhe pendentes: a espada ter-lhe-ia caído no chão, se não estivesse prêsa ao punho do cavaleiro por uma cadeia de ferro. O ginete, sentindo as rédeas frouxas, fugiu um bom pedaço pela campanha, a todo o galope.
Mas o Lidador tornou a si: uma forte sofreada avisou o ginete de que seu senhor não morrera. À rédea sôlta, lá volta o fronteiro de Beja; escorre-lhe o sangue, envolto em escuma, pelos cantos da bôca: traz os olhos torvos de ira: ai de Almoleimar!
Semelhante ao vento de Deus, Gonçalo Mendes da Maia passou por entre os cristãos e mouros: os dois contendores viram-se, e, como o leão e o tigre, correram um para o outro. As espadas reluziam no ar; mas o golpe do Lidador era simulado, e o ferro mudando de movimento no ar, foi bater de ponta no gorjal de Almoleimar, que cedeu à violenta estocada; e o dangue, saindo às golfadas, cortou a última maldição do agareno.
Mas a espada dêste também não errara o golpe: vibrada na ânsia, colhera pelo ombro esquerdo o velho fronteiro e, rompendo a grossa malha do lorigão, penetrara na carne até o osso. Ainda mais uma vez a mesma terra bebeu nobre sangue gôdo misturado com sangue árabe.
- Perro maldito! Sabe lá no inferno que a espada de Gonçalo Mendes é mais rija que a sua cervilheira.
E, dizendo isto, o Lidador caiu amortecido; um dos seus homens de armas voou a socorrê-lo; mas o último golpe d'Almoleimar fôra o brado da sepultura para o fronteiro de Beja: os ossos do ombro do bom velho estavam como triturados, e as carnes rasgadas pendiam-lhe para um e para outro lado envôltas nas malhas descosidas do lorigão.


5

Entretanto os mouros iam de vencida: Mem Moniz, D. Ligel, Godinho Fafes, Gomes Mendes Gedeão e os outros cavaleiros daquela lustrosa companhia tinham praticado maravilhosas façanhas. Mas, entre todos, tornava-se notável o Espadeiro. Com um pesado montante nas mãos, coberto de pó, suor e sangue, pelejava a pé; que o seu agigantado ginete caíra morto de muitos tiros de frechas lançadas. De roda dêle não se viam senão cadáveres e membros destroncados, por cima dos quais trepavam, para logo recuarem ou baquearem no chão, os mais ousados cavaleiros árabes. Como um promontório de escarpados alcantis, Lourenço Viegas estava imóvel e sabranceiro n meio do embate daquelas vagas de pelejadores que vinham desfazer-se contra o terrível montante do filho de Egas Moniz.
Quando o fronteiro caiu, o grosso dos mouros fugia já para além do pinhal; mas os mais valentes pelejavam ainda à roda do seu moribendo. O Lidador êsse tinha sido pôsto em cima de umas andas, feitas de troncos e franças de árvores, e quatro escudeiros, que restavam vivos dos dez que consigo trouxera, o haviam transportado para a saga da cavalgada. O tinir dos golpes era já muito frouxo e sumiam-se no som dos gemidos, pragas e lamentos que soltavam os feridos derramados pela veiga ensangüentada. Se os mouros, porém, levavam, fugindo, vergonha e dano, a vitória não saíra barata aos portuguêses. Viam perigosamente ferido o seu velho capitão, e tinham perdido alguns cavaleiros de conta e a maior parte dos homens de armas, escudeiros e pajens.
Foi neste ponto que, ao longe, se viu erguer uma nuvem de pó, que voava rápida para o lugar da peleja. Mais perto, aquêle turbilhão rareou vomitando do seio basto esquadrão de árabes. Os mouros que fugiam deram volta e gritaram:
A Ali-Abu-Hassan! Só Deus é Deus, e Maomé o seu profeta!
Era, com efeito, Ali-Abu-Hassan, rei de Tânger, que estava com seu exército sôbre Mertola e que viera com mil cavaleiros em socorro de Almoleimar.


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Cansados de largo combater, reduzidos a menos de metade em número e cobertos de feridas, os cavaleiros de Cristo invocaram o seu nome e fizeram o sinal da cruz. O Lidador perguntou com voz fraca a um pajem, que estava ao pé das andas, que nova revolta era aquela.
- Os mouros foram socorridos por um grosso esquadrão - respondeu tristemente o pajem. - A Virgem Maria nos acuda, que os senhores cavaleiros parece recuarem já.
O Lidador cerrou os dentes com fôrça e levou a mão à cinta. Buscava a sua boa toledana.
- Pajem, quero um cavalo. Onde está a minha espada?
- Aqui a tenho, senhor. Mas estais tão quebrado de fôrças!...
- Silêncio! A espada, e um bom ginete.
O pajem deu-lhe a espada e foi pelo campo buscar um ginete, dos muitos que andavam já sem dono. Quando voltou com êle, o Lidador, pálido e coberto de sangue, estava em pé e dizia, falando consigo:
- Por Santiago que não morrerei como vilão da beetria onde entrou cavalgada de mouros!
E o pajem ajudou-o a montar o cavalo.
Ei-lo o velho fronteiro de Beja! Semelhava um espectro erguido de pouco em campo de finados: debaixo de muitos panos que lhe envolviam o braço e o ombro esquerdo levava a própria morte; nos fios da espada, que a mão direita mal sustinha, levava, porventura, ainda a morte de muitos outros!


7

Para onde mais travada e acesa andava a peleja se encaminhou o Lidador. Os cristãos afrouxavam diante daquela multidão de infiéis, entre os quais mal se enxergavam as cruzes vermelhas pintadas nas cimeiras dos portuguêses. Dois cavaleiros, porém, com vulto feroz, os olhos turvados de cólera, e as armaduras crivadas de golpes, sustinham todo o pêso da batalha. Eram êstes o Espadeiro e Mem Moniz. Quando o fronteiro assim os viu oferecidos a certa morte algumas lágrimas lhe caíram pelas faces e, esporeando o ginete, com a espada erguida, abriu caminho por entre infiéis e cristãos e chegou aonde os dois, cada um com seu montante nas mãos, faziam larga praça no meio dos inimigos.
- Bem-vindo, Gonçalo Mendes! - disse Mem Moniz. - Quiseste assistir conosco a esta festa de morte? Vergonha era, de feiot, que estivesses fazendo teu passamento, com todo o repouso, deitado lá na saga, enquanto eu, velha dona, espreito os mouros com meu sobrinho junto desta lareira...
- Implacáveis sois vós outros, cavaleiros de Riba-Douro, - respondeu o Lidador em voz sumida- que não perdoais uma palavra sem malícia. Lembra-te, Mem Moniz, de que bem depressa estaremos todos diante do justo juiz.
Velho sois; bem o mostrais! - acudiu o Espadeiro. - Não cureis de vãs porfias, mas de morrer como valentes. Demos nestes perros, que não ousam chegar-se a nós. Avante, e Santiago!
- Avante, e Santiago! - responderam Gonçalo Mendes e Mam Moniz: e os três cavaleiros deram rijamente nos mouros.





8

Quem hoje ouvir recontar os bravos golpes que no mês de julho de 1170 se deram na veiga da fronteira de Beja, notá-los-á de fábulas sonhadas; porque nós, homens corruptos e enfraquecidos por ócios e prazeres de vida afeminada, medimos por nossos ânimos e fôrças, a fôrça e o ânimo dos bons cavaleiros portuguêses do sécuo XII; e todavia, êsses golpes ainda soam, através das eras, nas tradições e crônicas, tanto cristãs como agarenas.
Depois de deixar assinadas muitas armaduras mouriscas, o Lidador vibrara pela última vez a espada e abrira o elmo e o crânio de um cavaleiro árabe. O violento abalo que experimentou lhe fêz rebentar em torrentes o sangue da ferida que recebera das mãos de Almoleimar e, cerrando os olhos, caiu morto ao pé do Espadeiro, de Mem Moniz e de Afonso Hermingues de Baião, que com êles se ajuntara. Repousou, finalmente, Gonçalo Mendes da Maia de oitenta anos de combates!
Já a êste tempo cristãos e mouros se haviam descido dos cavalos e pelejavam a pé. Traziam-se assim à vontade, e recrescia a crueza da batalha. Entre os cavaleiros de Beja espalhou-se logo a nova da morte do seu capitão, e não houve ali olhos que ficasem enxutos. O despeito do próprio Mem Moniz deu lugar à dor, e o velho de Riba-Douro exclamou entre soluços:
- Gonçalo Mendes, és morto! Nós todos quantos aqui somos, não tardará que te sigamos; mas ao menso, nem tu, nem nós ficaremos sem vingança!
- Vingança! - bradou o Espadeiro com voz rouca, e rangendo os dentes. Deu alguns passos e viu-se o seu montante reluzir, como uma centelha em céu proceloso.
Era Ali-Abu-Hassan: Lourenço Viegas o conhecera pelo timbre real do morrião.


9

Se já vivestes vida de combates em cidade sitiada, tereis visto muitas vêzes um vulto negro que em linha diagonal corta os ares, sussurrando e gemendo. Rápido, como um pensamento criminoso em alma honesta, êle chegou das nuvens à terra, antes que vos lembrásseis do seu nome. Se encontrou na passagem ângulo de tôrre secular, o mármore converte-se em pó; se atravessou, pelas ramas de árvore basta e frondosa, a fôlha mais virente e frágil, o raminho mais tenro é dividido, como se, com cutelo sutilíssimo, mão de homem lhe houvera cerceado atentamente uma parte; e, todavia, não é um ferro açacalado: é um globo de ferro; é a bomba, que passa, como a maldição de Deus. Depois, debaixo dela, o chão achata-se e a terra espadana aos ares; e, como agitada, despedaçada por cem mil demônios, aquela máquina do inferno estoura, e de roda dela há um zumbir sinistro: são mil fragmentos; são mil mortes que se derramam ao longe. Então faz-se um grande silêncio vêem-se corpos destroncados, poças de sangue, arcabuzes quebrados, e ouvem-se o gemer dos feridos e o estertor dos moribundos.
Tal desceu o montante do Espadeiro, rôto dos milhares de golpes que o cavaleiro tinha descarregado. O elmo de Ali-Abu-Hassan faiscou, voando em pedaços pelos ares, e o ferro cristão esmigalhou o crânio do infiel, abriu-o até os dentes. Ali-Abu-Hassan caiu.
- Lidador! Lidador! - disse Lourenço Viegas, com voz comprimida. As lágrimas misturavam-se-lhe nas faces com o suor, com o pó e com o sangue do agareno, de que ficou coberto. Não pôde dizer mais nada.
Tão espantoso golpe aterrou os mouros. Os portuguêses seriam já apenas sessenta, entre cavaleiros e homens d'armas: mas pelejavam como desesperados e resolvidos a morrer. Mais de mil inimigos juncavam o campo, de envôlta com os cristãos. A morte de Ali-Abu-Hassan foi o sinal da fugida.
Os portuguêses, senhores do campo, celebravam com prantos a vitória. Poucos havia que não estivessem feridos; nenhum que não tivesse as armas falsadas e rôtas. O Lidador e os demais cavaleiros de grande conta que naquela jornada tinham acabado, atravessados em cima dos ginetes, foram conduzidos a Beja. Após aquêle tristíssimo préstito, iam os cavaleiros a passo lento, e um sacerdote templário, que fôra na cavalgada com a espada cheia de sangue metida na bainha, salmodeava em voz baixa aquelas palavras do livro da Sabedoria:

"Justorum autem animae in manu Dei sunt, et non tangent illos tormentum mortis".

FIM

"A pata do macaco"; William W. Jakobs

A Pata do Macaco


W. W. Jacobs


Lá fora, a noite estava fria e úmida, mas na pequena sala de visitas de Labumum Villa os postigos estavam abaixados e o fogo queimava na lareira. Pai e filho jogavam xadrez: o primeiro tinha idéias sobre o jogo que envolviam mudanças radicais, colocando o rei em perigo tão desnecessário que até provocava comentários da velha senhora de cabelos brancos, que tricotava serenamente perto do fogo.- Ouça o vento - disse o Sr. White, que, tendo visto tarde demais um erro fatal, queria evitar que o filho o visse.- Estou escutando - disse o último, estudando o tabuleiro ao esticar a mão.- Xeque.- Eu duvido que ele venha hoje à noite - disse o pai, com a mão parada em cima do tabuleiro.- Mate - replicou o filho.- Essa é a desvantagem de se viver tão afastado - vociferou o Sr. White, com um a violência súbita e inesperada. - De todos os lugares desertos e lamacentos para se viver, este é o pior. O caminho é um atoleiro, e a estrada uma torrente. Não sei o que as pessoas têm na cabeça. Acho que, como só sobraram duas casas na estrada, elas acham que não faz mal.- Não se preocupe, querido - disse a esposa em tom apaziguador. - Talvez você ganhe a próxima partida.O Sr. White levantou os olhos bruscamente a tempo de perceber uma troca de olhares entre mãe e filho. As palavras morreram em seus lábios, e ele escondeu um sorriso de culpa atrás da barba fina e grisalha.- Aí vem ele - disse Herbert White, quando o portão bateu ruidosamente e passos pesados se aproximaram da porta.O velho levantou-se com uma pressa hospitaleira e, ao abrir a porta, foi ouvido cumprimentando o recém chegado. Este também o cumprimentou, e a Sra. White tossiu ligeiramente quando o marido entrou na sala, seguido por um homem alto e corpulento, com olhos pequenos e nariz vermelho.- Sargento Morris - disse ele, apresentando-o.O sargento apertou as mãos e, sentando-se no lugar que lhe ofereceram perto do fogo, observou satisfeito o anfitrião pegar uísque e copos, e colocar uma pequena chaleira de cobre no fogo.Depois do terceiro copo, seus olhos ficaram mais brilhantes, e ele começou a falar, o pequeno círculo familiar olhando com interessante este visitante de lugares distantes, quando ele empertigou os ombros largos na cadeira e falou de cenários selvagens e feitos intrépidos: de guerras, pragas e povos estranhos.- Vinte e um anos nessa vida - disse o Sr. White, olhando para a esposa e o filho. - Quando ele foi embora era um rapazinho no armazém. Agora olhem só para ele.- Ele não parece ter sofrido muitos reveses - disse a Sra. White amavelmente.- Eu gostaria de ir à Índia - disse o velho - só para conhecer, compreende?- Você está bem melhor aqui - disse o sargento, sacudindo a cabeça. Pôs o copo vazio na mesa e, suspirando baixinho, sacudiu a cabeça novamente.- Eu gostaria de ver aqueles velhos templos, os faquires e os nativos - disse o velho. - O que foi que você começou a me contar outro dia sobre uma pata de macaco ou algo assim Morris?- Nada - disse o soldado rapidamente. - Não é nada de importante.- Pata de macaco? - perguntou a Sra. White, curiosa.- Bem, é só um pouco do que se poderia chamar de magia, talvez - disse o sargento com falso ar distraído.Os três ouvintes debruçaram-se nas cadeiras interessados. O visitante levou o copo vazio à boca distraidamente e depois recolocou-o onde estava. O dono da casa tornou a enchê-lo.- Aparentemente - disse o sargento, mexendo no bolso - é só uma patinha comum dissecada.Tirou uma coisa do bolso e mostrou-a. A Sra. White recuou com uma careta, mas o filho, pegando-a, examinou-a com curiosidade.- E o que há de especial nela? - perguntou o Sr. White ao pegá-la da mão do filho e, depois de examiná-la, colocá-la sobre a mesa.- Foi encantada por um velho faquir - disse o sargento -, um homem muito santo. Ele queria provar que o destino regia a vida das pessoas, e que aqueles que interferissem nele seriam castigados. Fez um encantamento pelo qual três homens distintos poderiam fazer, cada um, três pedidos a ela.A maneira dele ao dizer isso foi tão solene que os ouvintes perceberam que suas risadas estavam um pouco fora de propósito.- Bem, por que não faz os seus três pedidos, senhor? - disse Herbert White astutamente.O soldado olhou para ele como olham as pessoas de meia-idade para um jovem presunçoso.- Eu fiz - disse ele calmamente, e seu rosto marcado empalideceu.- E teve mesmo os três desejos satisfeitos? - perguntou a Sra. White.- Tive - disse o sargento, e o copo bateu nos dentes fortes.- E alguém mais fez os pedidos? - insistiu a senhora.- O primeiro homem realizou os três desejos - foi a resposta. - Eu não sei quais foram os dois primeiros, mas o terceiro foi para morrer. Por isso é que consegui a pata.Seu tom de voz era tão grave que o grupo ficou em silêncio.- Se você conseguiu realizar os três desejos, ela não serve mais para você Morris - disse o velho finalmente. - Para que você guarda essa pata?O soldado meneou a cabeça.- Por capricho, suponho - disse lentamente. - Cheguei a pensar em vendê-la, mas acho que não o farei. Ela já causou muitas desgraças. Além disso, as pessoas não vão comprar. Acham que é um conto de fadas, algumas delas; e as que acreditam querem tentar primeiro para pagar depois.- Se você pudesse fazer mais três pedidos - disse o velho, olhando para ele atentamente -, você os faria?- Eu não sei - disse o outro. - Eu não sei.Pegou a pata e, balançando-a entre os dedos, de repente jogou-a no fogo.White, com um ligeiro grito, abaixou-se e tirou-a de lá.- É melhor deixar que ela se queime - disse o soldado solenemente.- Se você não quer mais, Morris - disse o outro -, me dá.- Não - disse o amigo obstinadamente. - Eu a joguei no fogo. Se você ficar com ela, não me culpe pelo que acontecer. Jogue isso no fogo outra vez, como um homem sensato.O outro sacudiu a cabeça e examinou sua nova aquisição atentamente.- Como você faz para pedir? - perguntou.- Segure a pata na mão direita e faça o pedido em voz alta - disse o sargento -, mas eu o advirto sobre as conseqüências.- Parece um conto das Mil e uma noites - disse a Sra. White, ao se levantar e começar a pôr o jantar na mesa. - Você não acha que deveria pedir quatro pares de mão para mim?- Se quer fazer um pedido - disse ele asperamente -, peça algo sensato. O Sr. White colocou a pata no bolso novamente e, arrumando as cadeiras acenou para que o amigo fosse para a mesa. Durante o jantar o talismã foi parcialmente esquecido, e depois os três ficaram escutando, fascinados, um segundo capítulo das aventuras do soldado na Índia.- Se a história sobre a pata de macaco não for mais verdadeira do que as que nos contou - disse Herbert, quando a porta se fechou atrás do convidado, que partiu a tempo de pegar o último trem-, nós não devemos dar muito crédito a ela.- Você deu alguma coisa a ele por ela, papai? - perguntou a Sra. White, olhando para o marido atentamente.- Pouca coisa - disse ele, corando ligeiramente. - Ele não queria aceitar, mas eu o fiz aceitar. E ele tornou a insistir que eu jogasse fora.- É claro - disse Herbert, fingindo estar horrorizado. - Ora, nós vamos ser ricos, famosos e felizes. Peça para ser um imperador, papai, para começar, então você não vai ser mais dominado pela mulher.Ele correu em volta da mesa, perseguido pela Sra. White armada com uma capa de poltrona.O Sr. White tirou a pata do bolso e olhou para ela dubiamente.- Eu não sei o que pedir, é um fato - disse lentamente. - Eu acho que tenho tudo o que quero.- Se você acabasse de pagar a casa ficaria bem feliz, não ficaria? - disse Herbert, com a mão no ombro dele. - Bem, peça 200 libras, então, isso dá.O pai, sorrindo envergonhado pela própria ingenuidade, segurou o talismã, quando o filho, com uma cara solene, um tanto franzida por uma piscadela de olhos para a mãe, sentou-se no piano e tocou alguns acordes para fazer fundo.- Eu desejo 200 libras - disse o velho distintamente.Um rangido do piano seguiu-se às palavras, interrompido por um grito estridente do velho. A mulher e o filho correram até ele.- Ela se mexeu - gritou ele, com um olhar de nojo para o objeto caído no chão. - Quando eu fiz o pedido, ela se contorceu na minha mão como uma cobra.- Bem, eu não vejo o dinheiro - disse o filho ao pegá-la e colocá-la em cima da mesa - e aposto que nunca vou ver.- Deve ter sido imaginação sua, papai - disse a esposa, olhando para ele ansiosamente.Ele sacudiu a cabeça.- Não faz mal, não aconteceu nada, mas a coisa me deu um susto assim mesmo.Eles se sentaram perto do fogo novamente enquanto os dois homens acabavam de fumar cachimbos. Lá fora, o vento zunia mais do que nunca, e o velho teve um sobressalto com o barulho de uma porta batendo no andar de cima. Um silêncio estranho e opressivo abateu-se sobre todos os três, e perdurou até o velho casal se levantar e ir dormir.- Eu espero que vocês encontrem o dinheiro dentro de um grande saco no meio da cama - disse Herbert, ao lhes desejar boa noite - e algo terrível agachado em cima do armário observando vocês guardarem seu dinheiro maldito.Ficou sentado sozinho na escuridão, olhando para o fogo baixo e vendo caras nele. A última cara foi tão feia e tão simiesca que ele olhou para ela assombrado. A cara ficou tão vivida que, com uma risada inquieta, ele procurou um copo na mesa que tivesse um pouco de água para jogar no fogo. Sua mão pegou na pata de macaco, e com um ligeiro estremecimento ele limpou a mão no casaco e foi dormir.IINa claridade do sol de inverno, na manhã seguinte, quando este banhou a mesa do café, ele riu de seus temores. Havia um ar de naturalidade na sala que não existia na noite anterior, e a pequena pata suja estava jogada na mesa de canto com um descuido que não atribuia grande crença a suas virtudes.- Eu creio que todos os velhos soldados são iguais - disse a Sra. White. - Essa idéia de dar ouvidos a tal tolice! Como é que se pode realizar desejos hoje em dia? E se fosse possível, como é que iam aparecer 200 libras, papai?- caindo do céu, talvez - disse Herbert, com ar brincalhão.- Morris disse que as coisas aconteciam com tanta naturalidade - disse o pai - que a gente podia até achar que era coincidência.- Bem, não gaste o dinheiro antes de eu voltar - disse Herbert, ao se levantar da mesa. - Estou com medo de que você se torne um homem mesquinho e avarento, e vamos ter de renegá-lo.A mãe riu e, acompanhando-o até a porta, viu-o descer a rua. Voltando à mesa do café, divertiu-se à custa da credulidade do marido. O que não a impediu de correr até a porta com a batida do carteiro, nem de se referir a sargentos da reserva com vício de beber, quando descobriu que o correio trouxera uma conta do alfaiate.- Herbert vai dizer uma das suas gracinhas quando chegar em casa - disse ela, quando se sentaram para jantar.- Com certeza - disse o Sr. White, servindo-se de cerveja -, mas, apesar de tudo, a coisa se mexeu na minha mão; eu posso jurar.- Foi impressão - disse a senhora apaziguadoramente.- Estou dizendo que se mexeu - replicou o outro. - Não há dúvida; eu tinha acabado... O que houve?A mulher não respondeu. Estava observando os movimentos misteriosos de um homem do lado de fora, que, espiando com indecisão para a casa, parecia estar tentando tomar a decisão de entrar. Lembrando-se das 200 libras, ela reparou que o estranho estava bem-vestido e usava um chapéu de seda novo. Por três vezes ele parou no portão, e depois caminhou novamente. Da quarta vez ficou com a mão parada sobre ele, e depois com uma súbita resolução abriu-o e entrou. A Sra. White no mesmo momento desamarrou o avental rapidamente, colocando-o debaixo da almofada da cadeira. Convidou o estranho, que parecia deslocado, a entrar. Ele olhou para ela furtivamente, e ouviu preocupado, a senhora desculpar-se pela aparência da sala, e pelo casaco do marido, uma roupa que ele geralmente reservava para o jardim. Então ela esperou, com paciência, que ele falasse do que se tratava, mas, a princípio, ele ficou estranhamente calado.- Eu... pediram-me para vir aqui - disse ele finalmente, e abaixando-se tirou um pedaço de algodão das calças. - Eu venho representando "Maw&Meggins".A senhora sobressaltou-se.- Aconteceu alguma coisa? - perguntou ela, ofegante - Acontecem alguma coisa a Herbert? O que é? O que é?O marido interveio.- Calma, calma, mamãe - disse ele rapidamente. - Sente-se e não tire conclusões precipitadas. O senhor certamente não trouxe más notícias, não é, senhor - e olhou para o outro ansiosamente.- Eu lamento... - começou o visitante.- Ele está ferido? - perguntou a mãe desesperada.O visitante assentiu com a cabeça.- Muito ferido - disse. - Mas não está sofrendo.- Ah, graças a Deus! - disse a senhora, apertando as mãos. - Graças a Deus! Graças...Parou de falar de repente quando o significado sinistro da afirmativa se abateu sobre ela, e ela viu a terrível confirmação de seus temores no rosto desviado do outro. Prendeu a respiração e, virando-se para o marido, menos perspicaz, pôs a mão trêmula sobre a dele. Seguiu-se um demorado silêncio.- Ele foi apanhado pela máquina - repetiu o Sr. White, estonteado. - Ah! Sim.Ficou sentado olhando para a janela e, tomando a mão da esposa entra as suas, apertou-a como tinha vontade de fazer nos velhos tempos de namoro há quase 40 anos.- Ele era o único que nos restava - disse ele, voltando-se amavelmente para o visitante. - É difícil.O outro tossiu e, levantando-se, caminhou lentamente até a janela.- A firma me pediu para transmitir os nossos sinceros pêsames a vocês por sua grande perda - disse ele, sem olhar para trás. - Eu peço que compreendam que sou apenas um empregado da firma e estou apenas obedecendo ordens.Não houve resposta; o rosto da senhora estava branco, os olhos parados e a respiração inaudível; no rosto do marido havia um olhar que o amigo sargento talvez tivesse na primeira batalha.- Devo dizer que "Maw&Meggins" estão isentos de toda responsabilidade - continuou o outro. - Eles não têm nenhuma dívida com a família, mas, em consideração aos serviços de seu filho, desejam presenteá-los com uma certa soma como compensação.O Sr. White largou a mão da esposa e, pondo-se de pé, olhou para o visitante horrorizado. Seus lábios secos pronunciaram as palavras:- Quanto?- Duzentas libras - foi a resposta.Indiferente ao grito da esposa, o velho sorriu fracamente, estendeu as mãos como um homem cego e caiu, desfalecido, no chão.IIINo enorme cemitério novo, a alguns quilômetros de distância, os velhos enterraram seu morto e voltaram para casa mergulhada em sombras e silêncio. Tudo terminara tão rápido que a princípio nem se davam conta do que acontecera, e ficaram num estado de expectativa como se fosse acontecer mais alguma coisa - algo mais que aliviasse esse fardo, pesado demais para corações velhos.Mas os dias se passaram, e a expectativa deu lugar à resignação - a resignação desesperançada dos velhos, às vezes chamada erradamente de apatia. Algumas vezes nem trocavam uma palavra, pois agora não tinham nada do que falar e os dias eram compridos e desanimados.Foi por volta de uma semana depois que o velho, acordando subitamente de noite, estendeu o braço e viu-se sozinho. O quarto estava no escuro e o ruído de soluços baixinhos vinha da janela. Ele se levantou na cama e ficou ouvindo.- Volte para a cama - disse ele ternamente. - Você vai ficar gelada.- Está mais frio para ele - disse a senhora, e chorou novamente.O som de seus soluços apagou-se nos ouvidos dele. A cama estava quente, e seus olhos pesados de sono. Ele cochilava a todo instante e acabou pegando no sono, quando um súbito grito histérico da esposa o despertou com um sobressalto.- A pata! - gritou histericamente. - A pata de macaco!Ele se levantou, alarmado.- Onde? Onde está? O que houve?Ela correu agitada até ele.- Eu quero a pata - disse ela calmamente. - Você não a destruiu?- Está na sala, em cima da prateleira - replicou ele atônito. - Por quê?Ela chorou e riu ao mesmo tempo e, debruçando-se, beijou-o no rosto.- Só tive essa idéia agora - disse ela histericamente. - Por que não pensei nisso antes? Por que você não pensou nisso antes?- Pensar em quê? - perguntou ele.- Nos outros dois desejos - replicou ela rapidamente. - Nós só fizemos um pedido.- Não foi suficiente? - perguntou ele, irado.- Não - gritou ela, triunfante; - ainda vamos fazer um.Desça, apanhe a pata rapidamente, e deseje que o nosso filho viva novamente.O homem sentou-se na cama e arrancou as cobertas de cima do corpo trêmulo.- Meu bom Deus, você está louca! Gritou ele, horrorizado.- Pegue aquela coisa - disse ela, ofegante -, pegue depressa, e faça o pedido... Ah, meu filho, meu filho!O Marido riscou um fósforo e acendeu a vela.- Volte para a cama - disse ele, incerto. - Você não sabe o que está dizendo.- Nós conseguimos satisfazer o primeiro pedido - disse a senhora, febrilmente. - Por que não o segundo?- Foi uma coincidência - gaguejou o velho.- Vá buscar a pata e faça o pedido - gritou a esposa, tremendo de excitação.O velho virou-se, olhou para ela, e sua voz tremeu.- Ele já está morto há 10 dias e, além disso, ele... - eu não queria lhe dizer isso, mas... só consegui reconhecê-lo pela roupa. Se já estava tão horrível para você ver, imagine agora?- Traga-o de volta - gritou a senhora, e o arrastou para a porta. - Você acha que tenho medo do filho que criei?Ele desceu na escuridão, foi tateando até a sala e depois até a lareira. O talismã estava no lugar, e um medo horrível de que o desejo ainda não expresso pudesse trazer o filho mutilado apossou-se dele, e ficou sem ar ao perceber que perdera a direção da porta. Com a testa fria de suor, ele deu volta na mesa, tateando, e foi-se amparando na parede até se achar no corredor com a coisa nociva na mão.Até o rosto da esposa parecia mudado quando ele entrou no quarto. Estava branco e ansioso, e para seu temor parecia ter um olhar estranho. Ele sentiu medo dela.- Peça! - gritou ela, com voz forte.- Isso é loucura - disse ele, com voz trêmula.- Peça! - repetiu a esposa.Ele levantou a mão.- Eu desejo que meu filho viva novamente.O talismã caiu no chão, e ele olhou para a coisa com medo.Então afundou numa cadeira, trêmulo, quando a esposa, com os olhos ardentes, foi até a janela e levantou a persiana.Ficou sentado até ficar arrepiado de frio, olhando ocasionalmente para a figura da velha senhora espiando pela janela.O cotoco de vela, que queimara até a beirada do castiçal de porcelana, jogava sombras sobre o teto e as paredes, até que, com um bruxulear maior do que os outros, se apagou. O velho, com uma imensa sensação de alívio pelo fracasso do talismã, voltou para a cama, e um ou dois minutos depois a senhora veio silenciosamente para o seu lado.Nenhum dos dois disse nada, mas permaneceram deitados em silêncio, ouvindo o tique-taque do relógio. Um degrau rangeu, e um rato correu guinchando através do muro. A escuridão era opressiva e, depois de ficar deitado por algum tempo, criando coragem, ele pegou a caixa de fósforos e, acendendo um, foi até embaixo para pegar uma vela.Nos pés da escada o fósforo se apagou, e ele parou para riscar outro; no mesmo momento ouviu-se uma batida na porta da frente, tão baixa e furtiva que quase não se fazia ouvir.Os fósforos caíram-lhe da mão e espalharam-se no corredor. Ele permaneceu imóvel, com a respiração presa até a batida se repetir. Então virou-se e fugiu rapidamente para o quarto, fechando a porta atrás de si.Uma terceira batida ressoou pela casa.- O que é isso? - gritou a senhora, levantando-se.- Um rato - disse o velho com voz trêmula -, um rato. Ele passou por mim na escada.A esposa sentou-se na cama, escutando. Uma batida alta ressoou pela casa.- É Herbert! - gritou. - É Herbert!Ela correu até a porta, mas o marido ficou na frente dela e, pegando-a pelo braço, segurou-a com força.- O que você vai fazer? - sussurrou ele com voz rouca.- É meu filho; é Herbert! - gritou ela, debatendo-se mecanicamente. - Eu esqueci que ele estava a 10 quilômetros daqui. Por que está me segurando? Me solte. Eu tenho de abrir a porta.- Pelo amor de Deus não deixe entrar - gritou o velho tremendo.- Você está com medo do próprio filho - gritou ela, debatendo-se. - Me solte. Eu já vou, Herbert; eu já vou.Ouviu-se mais uma batida, e mais outra. A senhora com um arrancão súbito soltou-se e saiu correndo do quarto. O marido seguiu-a até a escada e chamou-a enquanto ela corria para baixo. Ele ouviu a corrente chocalhar e a tranca do chão ser puxada lenta e firmemente do lugar. Então a voz da senhora soou, nervosa e ofegante.- A tranca - gritou ela alto. - Desça que eu não consigo puxar a tranca.Mas o marido estava de joelhos no chão, procurando a pata desesperadamente. Se pelo menos conseguisse encontrá-la antes que a coisa entrasse. Uma série de batidas reverberou pela casa, e ele ouviu o arrastar de uma cadeira quando a esposa a colocou no corredor encostada na porta. Ouviu o ranger da tranca quando esta se destravou lentamente, e no mesmo momento encontrou a pata de macaco, e desesperadamente fez o terceiro e último pedido.As batidas pararam subitamente, embora ainda ecoassem na casa. Ele ouviu a cadeira ser arrastada de volta, e a porta se abrir. Um vento frio subiu pela escada, e um gemido alto e demorado de decepção e tristeza da esposa lhe deu coragem para correr até ela e depois até o portão. O lampião da rua que tremulava do outro lado brilhava numa estrada silenciosa e deserta.