quinta-feira, 24 de setembro de 2009

A hora em que todos os cães latem

Existe uma hora na madrugada em que todos os cães se põem a latir desenfreadamente, uivam como lobos e guincham como enlouquecidos. E ficamos em nosso s quartos imundos com nossas garrafas de cerveja e o Lucky Strike entre os dedos no intervalo entre o XXIIIº e XXIVº capítulos do "Bom Pantagruel", de Rabelais - edição ilustrada - perguntando-nos p or que tais animais ladram tão loucamente madrugada afora, na escuridão. Talvez haja alguém no telhado, e seria importante verificar , ter um três oitão para dar uns pipocos no intruso; talvez haja alguém pedindo ajuda no portão, um parente distante fazendo uma visita surpresa que se perdeu no trânsito labiríntico da cidade, ou haja um alienígena abduzindo alguém na vizinhança, ou uma ação de Dom Pablo Corleone nas imediações tenha despertado a curiosidade das autoridades. talvez haja apenas um pagode ou forró nas imediações, para o qual eu não fui convidado. Ou talvez não haja nada. Há um trecho muito interessante, na página 20 de "O lodo da estepe", de Hermann Hesse, que talvez dê conta disso.

""A maioria dos homens não quer nadar antes que o possa fazer." Não é engraçado? Naturalmente, não querem nadar. Nasceram para andar na terra, e não para a água. E, naturalmente, não querem pensar! isso mesmo! E quem pensa, quem faz do pensamento sua principal atividade, pode chegar muito longe com isso, mas sem dúvida estará confundindo a terra com a água e um dia morrerá afogado."

Os cães da noite latem, e é isso. Observemos apenas assim, ou postulemos todos os motivos acima nas longas noites de insônia. A Simplicidade às vezes funciona como a sagrada mão da musa correndo a pena sobre o pergaminho. Ou as canções de Orfeu no Hades. Uma caminhada no bosque. Um copo de cerveja gelada. A música dos Ramones. Ou nada disso. Gostaria de tê-la. Ou não. Seria a noite de insônia mais agradável com ela? Bem, a única certeza é que os cães latem, todos, a essa hora. E são cães.

Tadeu Sena, 21/09/09.

domingo, 20 de setembro de 2009

Coisas antigas...

Atendendo a pedidos antigos...

A Inundação

Subia eu a rua Padre Celestino numa ensolarada tarde de segunda-feira. O sol queimava a pele de meu rosto e meus braços, fazendo-me transpirar sobremaneira, conferindo-me um aspecto pegajoso e repugnante, mas, com o mesmo efeito, dando um ar de atração e agradável volúpia à pequena figura de cabelos negros a minha frente, o que me faz concluir que a mediocridade da vida é pouco mais suportável do que imaginava momentos antes. Vou subindo a rua hipnotizado pela figura de pele morena que caminha pouco acima, em direção a uma das principais avenidas da cidade.
A poluição lançada por carros e chaminés de indústrias, aliada à tarde de calor intenso, faz com que o próprio ar se torne sujo, criando uma atmosfera pegajosa e dando um aspecto gorduroso e resinoso às pessoas e aos prédios, em meio ao asfalto quente que, em partes, vai derretendo. Afora isso, dou-me conta de que, por baixo da pesada calça jeans e da camisa (que não deixa de ser grossa para um dia de calor insuportável como este), estou completamente banhado em suor, o que me faz perceber que mesmo se pudesse ter qualquer contato com a pequena morena à minha frente, ela acharia meu aspecto repugnante, e que o simples fato de poder observa-la caminhando displicentemente à minha frente já é suficiente colírio para os olhos. Conformo-me com este pensamento.
Eis então que, quando já me encontro a algumas dezenas de metros do topo da rua íngreme, sua esquina, vejo, de repente, que uma enorme enxurrada começa a descer violentamente, arrastando as barracas dos camelôs da esquina a alguns metros; as pessoas correm desesperadamente frente à inusitada torrente que toma conta de toda a rua e vai-se aproximando cada vez mais, uma incrível e inesperada borrasca de laranjas, grandes e pequenas, cítricas e cruéis, que desce rolando ladeira abaixo formando uma onda gigante, um maremoto de frutas desvairadas que, cada vez mais, vai tomando conta da via, arrastando pessoas, cobrindo carros, levando um sujeito que inocentemente andava de bicicleta de um lado para o outro. Desce incessantemente até alcançar a pequena e bela morena que caminha a minha frente, e em seguida, a mim.
Sinto o golpe das frutas que me derrubam com violência e vão-me arrastando rua abaixo por vários metros, num movimento de subida e descida que me faz esfolar no asfalto, enquanto tento livrar-me da borrasca de laranjas. O sumo ácido das frutas esmagadas faz com que meus ferimentos ardam e a dor se intensifique, enquanto me choco com a parede de um posto de gasolina lá embaixo, no final da rua...

Sei que houve alegria e comoção por toda a cidade, tanto naquele dia como nos seguintes. Os comerciantes não mais tiveram baixas nos seus estoques de laranja por um longo tempo. Os garotos que entregavam panfletos nas ruas do centro da cidade regozijavam-se com laranjas. Nos bares, os bêbados encontravam o sabor ácido da laranja entre um gole e outro, enquanto surgiam bebidas variadas que empregavam a fruta em sua preparação. Os desempregados não mais passavam sede ao sair em busca de emprego no centro da cidade, pois o suco de laranja agora tinha preços baixíssimos. Nos restaurantes, a laranja e seu suco eram oferecidos gratuitamente e com fartura nas refeições. Surgiam variadas receitas de bolos, compotas, sobremesas e pratos que faziam a diversão das donas de casa e desafiavam os maîtres e cozinheiros.
Nunca pude saber o real motivo da inundação de laranjas que invadiu a cidade naquela insuportavelmente quente tarde de segunda-feira, pois morri no mesmo dia, soterrado pela enxurrada. Seu sumo ácido atiçava meus ferimentos, enquanto seu peso quebrava meus ossos e me impedia de respirar. As ambulâncias que foram enviadas para socorrer os feridos nunca chegaram ao seu destino, visto que todas as ruas encontravam-se tomadas pelas frutas e o trânsito tornara-se impraticável.
Mas a alma humana tem a faculdade de com tudo se conformar.
Momentos antes de a vida abandonar meu corpo, consegui o tão sonhado contato com a pequena figura morena que jazia soterrada a poucos metros do meu corpo inerte. Com muito esforço pude ouvir sua voz em meio à balbúrdia de frutas, antes que ambos expirássemos, e, num momento de reflexão que só a proximidade da morte é capaz de conceder, pude ouvi-la dizendo antes que desse seu último suspiro e deixasse de um a vez esta vida:
- Graças a Deus que foram laranjas. Imagine se fossem abacaxis...

Tadeu Sena, 10/02/2002.

Lá vamos nós de novo...

Boas noites

Eis que vem a necessidade de escrever. Perdi a senha do meu antigo blog, e a necessidade de escrever me atormenta. Ora, ademais, resolvi escrever todos os dias! Para quê? Vejamos: para que ou para quem se escreve? Isso só o tempo dirá. Ou não. Ou nunca. Que fazer? Escrever, ora! Deixemos de delongas e vamos, assim, ao primeiro texto.


Sanatório Berghof é o nome do lugar onde Hans Castorp fica internado por um longo tempo. A princípio, o personagem sente-se estranho em relação ao lugar e até um pouco desesperado por deixá-lo. Estranhas coisas acontecem no local, mas é bom não confundir com esses romancezinhos de suspense ou de vampirinhos que nada tem a oferecer além de gasto de papel, um pouco de entretenimento aos seres de baixa atividade mental que os lêem (eu não adotei a reforma!) e lucros enormes ao mercado editorial. Em "A montanha mágica", o protagonista passa por uma transformação íntima, da qual não sai ileso, e cada uma das passagens gera um tipo diferente de inquietação no leitor, como se não pudéssemos dormir sem saber o que acontece no capítulo seguinte. Bem, está explicado o título do blog. Se alguém tiver interesse, a obra magnífica de Thomas Mann encontra-se na biblioteca municipal (se for o leitor guarulhense), e faz muito tempo que ninguém a pega. Não se assustem com o tamanho, o efeito é garantido. Está explicado o titulo do blog

"A verdadeira arte não oferece respostas, multiplica as perguntas."

Tadeu Sena

Boas noites.