quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

O insone

Hora de postar coisas novas aqui. Tem gente que vai pensar que isto é autobiográfico, mas eu afirmo com todas as minhas forças que não dormi em ponto de ônibus nenhum da cidade nos últimos tempos. E era hora de, finalmete, postar um texto novo aqui.

O insone

A vida não me deixa dormir. As órbitas fundas e azuladas no espelho, a face dura, ossuda e encovada de tanto tempo e os olhos óleo-avermelhados, remelentos e distantes, com sua bacia hidrográfica de pequenos regaços rubros ao redor da íris fosca têm acompanhado o crescer da barba, mícron por mícron no reflexo das noites insones; as sobrancelhas espessas, hirsutas e ardentes e a fronte cansada e dolorosa como se um balé paquidérmico dançasse da hipófise ao córtex, à nuca, ao giro de Krebs e ao de Broca, e como se os fogos de ano novo numa pirotecnia insana me acompanhassem madrugada após madrugada até as luzes da aurora e o sol queimando as retinas secas e enrubrescidas, colocando um halo cor de batata frita fria e cerveja quente rodeando os buracos-negros da córnea que com sua densidade exorbitante e sua gravitação demoníaca não deixam, sequer, escapar uma lúmen, um raio de luz, vendo, observando, enxergando ininterruptamente, a vista fatigada de tanto ver. Com isso, as cores luminosas assumem uma tonalidade poeirenta, fumacenta, obscuramente amarronzada, e a beleza fenece. Talvez eu tenha vivido demais ou dormido de menos, mas é certo que há um descompasso entre as duas atividades. Tenho vivido ininterruptamente há quinze anos, e não vejo término neste sofrimento.
O martírio estende-se pelo resto do corpo: os músculos doem a cada movimento carregados de letargia como se estivessem todos envenenados, mortos. O esforço para levantar uma perna numa caminhada é sobre-humano, sente-se cada fibra muscular gritando nos membros ressequidos, e cada caminhada parece os espasmos finais de um corpo agonizante tentando sentir seus últimos movimentos desesperados e latejantes, entregam-se à imobilidade, são obscurecidos e enregelados pelo rigor mortis. As fibras musculares são um cordame ressequido e poeirento retesado por calandras de aço, e rangem ruidosamente, os ossos estalam como o madeiramento de um navio velho abandonado à deriva; o corpo soa como uma velha porta de madeira bolorenta de enferrujadas dobradiças que se abre ruidosamente em seu ranger.
A insônia tem dessas metáforas grandiloqüentes, pois os que sofrem do mal, na ausência do quê fazer nas longas noites de outubro a outubro. Assim são as noites, negras e nevoentas, assim são as auroras rachadas e tormentosas. É muito tempo para um homem não dormir, mas eu não durmo.
Caminha-se, mas porque existe rua, existe calçada. Os músculos reagem dolorosamente, os tendões doem...
Repentinamente, uma região no centro, no âmago do crânio estala, e o banco frio do ponto de ônibus, metálico e repugnante, torna-se o local de descanso do corpo desgraçadamente seco pela interminável insônia. Os ossos, em contato com as estruturas gélidas e arestosas do banco gelado conseguem um raro prazer, distante e desconhecido e ignoram o fato de as formas terem sido produzidas para receber glúteos, não costas e braços puerilmente postos sob a cabeça, formando um rudimentar travesseiro. A cabeça descansa sobre as mãos juntas, e o desfalecimento toma conta do encéfalo seco e murcho dentro da abóboda óssea. As pálpebras cerram-se, e o contato dos olhos com a mucosa é arenoso, como se permeado por uma miríade de pirâmides minúsculas e ressequidas a rolarem pela superfície frágil do tecido ocular. Num momento, com o rolar das pálpebras, tudo se torna escuro e a consciência vai-se esvaindo lentamente. Finalmente, depois de tantos anos, o homem da areia visita-me. Desculpa-se pela demora e pelo olvido, mas realiza seu trabalho magnificamente. É o sono.
Lentamente, formas obscuras e nevoentas aparecem. Vejo-me deitado num sujo e frio banco de ponto de ônibus, os que esperam o coletivo afastam-se com asco, mas sorrio quase com desespero. O barulho das conversas e dos automóveis é quase imperceptível diante da situação, pois os olhos rolam de um lado para o outro num sonho que destoa da turbulência circundante, com seus capítulos de novela perdidos e seus motores possantes que são compensados pelas buzinas, já que a velocidade do trânsito é desproporcional à indicada nos velocímetros dos carros. Observo-me dormindo.
Lentamente, formas obscuras e nevoentas aparecem. Vejo-me deitado num sujo e frio banco de ponto de ônibus; os que esperam o coletivo afastam-se com asco, mas sorrio quase com desespero. O barulho das conversas e dos automóveis é quase imperceptível diante da situação, pois os olhos rolam de um lado para outro num sonho que destoa da turbulência circundante, com seus capítulos de novela perdidos e seus motores possantes que são compensados sonoramente pelas buzinas, já que a velocidade do trânsito é desproporcional à indicada nos velocímetros dos carros. Observo-me dormindo.
É impossível resistir ao impulso da curiosidade que, apesar do cansaço de anos, impele-me ao desejo de constatar se estou, realmente, depois de tantos anos, dormindo. Desperto, neste momento, alavancado por este sentimento e observo-me, como uma criança, com lágrimas de felicidade, para ver-me novamente num sujo e frio banco de ponto de ônibus; os que esperam o coletivo afastando-se com asco, mas sorrio quase com desespero. O barulho das conversas e dos automóveis é quase imperceptível diante da situação, pois os olhos rolam de um lado para o outro num sonho que destoa da turbulência circundante, com seus capítulos de novela perdidos e motores possantes que são compensados sonoramente pelas buzinas, já que a velocidade do trânsito é desproporcional à indicada nos velocímetros dos carros. Observo-me dormindo.

Tadeu Sena, 24/04/09.

Nenhum comentário:

Postar um comentário